segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Ainda sobre viajar...


"O outro traça, indefinidamente, a injunção de passar: como na ordem escrita, de uma só linha, mas sem fim: vai, segue em frente, este não é teu país, nem aquele tampouco - imperativo do desapego que obriga a pagar o preço de um abstrato domínio ocular do espaço deixando todo lugar próprio, perdendo o pé. A vidraça e a linha férrea repartem de um lado a anterioridade do viajante, narrador putativo e, do outro, a força de sê-lo, constituindo em objeto sem discursos, poder de um silêncio exterior. Mas, paradoxo, é o silêncio dessas coisas colocadas à distância, por trás da vidraça que, de longe, faz as nossas memórias falarem ou tira da sombra os sonhos de nossos segredos. O isolador produz pensamentos com separações. A vidraça e o aço criam especulativos ou gnósticos. É necessário esse corte, para que nasçam, fora dessas coisas mas não sem elas, as paisagens desconhecidas e as estranhas fábulas de nossas histórias anteriores." 

 Michel de Certeau

terça-feira, 7 de novembro de 2017

A vó Adelaide


Maria Adelaide de Jesus Alves. Minha vó Adelaide. Nascida em Lisboa em 1927, a vó atravessou o Atlântico em 1950 para uma nova vida no Brasil. Veio de navio, ela e seus dois filhos ainda bem pequenos. Ela tinha apenas 23 anos de idade quando fez essa viagem com os filhos. Meu vô Soares, então marido da vó, já tinha vindo antes. Quanta vida, quantas histórias a vó trazia da sua terrinha para cá? Que novas aventuras a aguardavam nesse país desconhecido? Que venturas e desventuras? Quantos sonhos, decepções, alegrias, realizações? A vó teve mais dois filhos no Brasil. Aqui a vó criou os seus filhos. E trabalhou. Cozinhou, costurou, bordou, leu, morou em várias cidades, viajou... No levar da sua vida, a vó deve ter dado tanta risada! E deve ter chorado muito. E brigado também... acho que sim... E, sim, avó deve ter amado... muito. Aqui no Brasil a vó e o vô se separaram. Também aqui a vó passou pela dor de perder um segundo filho. Para suportar o que não havia sido aprendido, o que não estava previsto, para suportar o inominável, o impossível, a vó precisou então viver de outros jeitos. E conseguiu. Seguindo em frente, a vó deve ter continuado a rir sim, e a chorar também, deve ter continuado a brigar, ainda bem... e a amar. 

“Que pode uma criatura senão, 
Entre criaturas, amar? 
Amar e esquecer, amar e malamar, 
Amar, desamar, amar? 
Sempre, e até de olhos vidrados, amar?” 

A vó teve muitos netos e bisnetos. Como eu me sentia orgulhosa de ser netinha dela! Ela era moderna, elegante, usava um lenço colorido no cabelo e uns óculos escuros enormes. Era tão falante! A vó lia, trabalhava, estudava, viajava, cozinhava, costurava, bordava, jogava buraco e adorava resolver equações de matemática... A vó escrevia cartinhas para mim e para a família para desejar felizes aniversários... Mas, mais do que escrever, acho que o que ela mais gostava era de contar histórias das coisas que fazia. A vó tinha um jeito tão envolvente de narrar qualquer coisa que até história ruim virava história boa. Na verdade, graças à lábia da vó, comecei a desconfiar da minha “perspicácia” avaliativa que dividia o mundo em coisas de “bom” ou de “mau” gosto, e a me perguntar se haveria mesmo histórias ruins. Quem já teve a oportunidade de ouvir a vó contando o que acontecia na novela Maria do Bairro ou no livro Cinquenta tons de cinza deve ter tido uma experiência bastante semelhante. A vó sempre foi muito atenta. Muitas vezes, essa atenção era do tipo silenciosa, que observada tudo ao redor, sem precisar falar nada, sem querer falar nada. Quieta. Por dentro, tempestade. Perspicaz, a vó fazia o que lhe convinha com as coisas que podia ter em mãos e, assim, acho que pôde ir transformando vazios em coisas que faziam sentido para ela. A vó soube continuar, soube transformar o que estava ao seu redor e soube se transformar. A vó viveu. Tanto! E passou tão rápido... Que vida! Um segundo de eternidades... 

“Que pode, pergunto, o ser amoroso, 
Sozinho, em rotação universal, senão 
Rodar também, e amar? 
Amar o que o mar traz à praia, 
O que ele sepulta, e o que, na brisa marinha, 
É sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia? 
Amar solenemente as palmas do deserto, 
O que é entrega ou adoração expectante, 
E amar o inóspito, o áspero, 
Um vaso sem flor, um chão de ferro, 
E o peito inerte, e a rua vista em sonho, 
E uma ave de rapina. 
Este o nosso destino: 
Amor sem conta, 
Distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas, 
Doação ilimitada a uma completa ingratidão, 
E na concha vazia do amor à procura medrosa, 
Paciente, de mais e mais amor. 
Amar a nossa falta mesma de amor, 
E na secura nossa, amar a água implícita, 
E o beijo tácito, e a sede infinita”