quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Um dos meus poemas preferidos de Manoel de Barros...



Matéria de poesia


Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia.

O homem que possui um pente e uma árvore serve para a poesia.

Terreno de 10 por 20, sujo de mato, e os detritos que nele gorjeiam, como, por exemplo, latas, servem para poesia.

As coisas que levam a nada têm grande importância.

Cada coisa ordinária é um elemento de estima; cada coisa sem préstimo tem seu lugar na poesia.

As coisas que não pretendem, como, por exemplo, pedras que cheiram água, homens que atravessam períodos de árvore, se prestam para poesia.

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado, como, por exemplo, o coração verde dos pássaros, serve para poesia.

Os loucos de água e estandarte servem demais para a poesia.

O traste é ótimo, o pobre-diabo é colosso.

As pessoas desimportantes dão para a poesia.

Qualquer pessoa ou escada, o que é bom para o lixo é bom para a poesia.

As coisas jogadas fora têm grande importância.

Um homem jogado fora também é objeto de poesia.

Aliás, saber qual o período médio que um homem jogado fora pode permanecer na terra sem nascerem em sua boca as raízes da escória também dá poesia!

Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia.


Riscos...





De que adianta você ter esta alma colada aos ossos dessa carne errada?

Sem o risco, a vida não vale a pena.

Se você não quiser arriscar, não comece.

Isso quer dizer, se você arriscar, perder namorada, esposa, filhos, emprego, a cabeça, e até a alma.

Mas, é sempre melhor isso do que olhar para todas essas outras pessoas que nunca acertam porque nunca se propõem ao risco.



W. Goethe





Tomando o sentido de 'perda' como 'perda de laços', nunca ousaria correr algum risco que implicasse em perder os laços com meus filhos. Arriscaria perder mil namorados, mil casamentos, o emprego e até a alma, mas nunca um filho. É engraçado pensar nessa impossibilidade sem nem mesmo ter passado pela experiência de ser mãe. Aliás, nem sei se quero mais ser mãe. Acho que não.

Excetuando essa impossibilidade, as palavras de Goethe me fascinam inteiramente. Sinto que o meu dever é correr todo o risco que valer a pena. Pouco me importa o que pensem, eu sonho os sonhos mais loucos, realizo os vôos mais altos! Então, claro, vivo caindo e me machucando. Mas, apesar da dor da queda, nunca me esqueço dos instantes de felicidade que senti e que, talvez, também proporcionei. Não deixo de me sentir grata pela riqueza da experiência vivida.


terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Um dos meus poemas preferidos de Machado de Assis...

Uma Criatura

Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois esta criatura está em toda a obra;
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.


Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.







sábado, 20 de fevereiro de 2010

Fazer, desfazer, refazer...




Refazendo tudo, refazenda...

Gilberto Gil




Nem sempre, ou melhor dizendo, quase nunca conseguimos fazer tudo tão bem quanto desejamos. Mas acreditar nessa possibilidade para toda e qualquer ação é uma ilusão deliciosa.

Pensando nisso, não posso deixar de lembrar de um fato do cotidiano que, para mim, teve muito valor. Foi quando fiz um bolo de cenoura com chocolate que saiu exatamente do jeitinho que eu queria. Meu irmão o chamou de "o bolo perfeito"...

Não, não passo dias e dias pensando em como fazer um bolo da melhor maneira, embora tenha que confessar que já dediquei bons momentos pensando em como aprimorar as minhas receitas. E quando saiu o tal do bolo perfeito, com toda a vaidade do mundo, fiquei tentando rememorar cada etapa para poder refazer tudo novamente, prazeirosamente, perfeitamente...

Por outro lado, também não posso deixar de lembrar de tanta coisa queria ter feito e acabei não conseguindo. Tanta coisa... Lembro aqui do que não escrevi na minha dissertação de mestrado, na minha tese de doutorado, nos meus artigos e, claro, neste blog. A verdade simples é que acabamos sempre fazendo o que é possível diante das circunstâncias em que estamos.

Estou sempre pensando no quanto posso fazer com aquilo que ainda não fiz. Em fazer coisas novas e refazer algumas coisas já feitas. Em me fazer sempre e me desfazer quando as coisas não dão certo. Enfim, em me refazer a cada nova "atuação", de acordo com o meu "placitum", conforme define Nietzsche (ver postagem anterior).

Essa necessidade, tão insistente, de atuar dessa maneira tem o seu lugar mais forte em mim na escrita. A cada palavra que escrevo, outra palavra surge impondo a necessidade da sua presença. E depois, isso ocorre com outra palavra e outra e outra. E essas palavras, sedutoras, vão me convencendo que devem entrar nos meus textos e que outras devem sumir. E o mesmo ocorre neste texto aqui, que estou agora, incessantemente, escrevendo, desescrevendo e reescrevendo...


Placitum



"Atuando, deixamos de lado – Não suporto, deveras, toda a moral que diz: “Não faças isso, não faças aquilo! Renuncia! Domina-te!...”. No entanto, aprecio a moral que me leva a fazer uma coisa e a refazê-la, a pensar nela de manhã à noite, a sonhar com ela durante a noite, e a não ter jamais outra preocupação que não seja fazê-la bem, tão bem quando somente eu posso entre todos os homens. A viver assim despojamo-nos, uma a uma, de todas as preocupações que não têm nada a ver com esta vida: vê-se sem ódio nem repugnância desaparecer hoje isto, amanhã aquilo, como folhas amarelas que o menor sopro solta da árvore; ou mesmo nem sequer se dá por isso, de tal modo o objetivo absorve, de tal modo o olhar se obstina em ver para diante, não se desviando nunca, nem para a direita nem para a esquerda, nem para cima nem para baixo. “É a nossa atividade que deve determinar o que deixamos de lado; e atuando, deixamos”, eis o que eu gosto, eis o meu próprio placitum (princípio)! Mas não tenho intenção de buscar com os olhos abertos o meu empobrecimento, não aprecio essas virtudes negativas que têm por essência a negação e a renúncia de si".

Nietzsche, em A Gaia Ciência.


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

O bem e o mal


Você mesmo é um participante do mal, caso contrário não estaria vivo. O que quer que você faça é mau para alguém. Essa é uma das ironias de toda a criação.
Joseph Campbell - O Poder do Mito


Ao afirmar isso, Campbell não está sendo relativista nem dizendo que só nos resta ser passivos diante do mal que sofremos ou que causamos. Ao contrário, em seu texto, ao discutir sobre essa afirmação, Campbell aponta para outra conclusão: a de que devemos participar desta vida, tal como ela é: ao mesmo tempo horrível e maravilhosa. Mesmo que seja difícil afirmar isso sem reservas, mesmo que soframos, devemos tomar parte no jogo e fazer o melhor que pudermos.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Uma pitadinha de lucidez




"...sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura."
Fernando Pessoa




Sou feita de palavras que já foram ditas antes, com alguma coisa de novo... sou feita de música e movimento... de coisas de cores indefinidas... de cheiros de sonho... de delírios, de devaneios... Eu não me alcanço, mas tento, todos os dias... Sou feita de vontades impossíveis e insensatas... É que o vento passa por mim e o sol brilha... E se um não passa, e se o outro não brilha, eu lembro que tenho memória, e eles estão lá! Ah, acho que também sou feita de uma pitatinha de lucidez...

Saudade do que ainda não aconteceu

"A tua saudade corta feito aço de navaia..."
Pena Branca e Xavantinho




A saudade não existe sem algum passado, sem alguma memória.
Mas ela existe também no presente, naqueles momentos em que algum fato extraordinário acontece e ficamos sabendo, no instante mesmo do seu acontecimento, que ele vai virar memória.
E, com muita freqüência, podemos observar a saudade transitando pelo futuro, nas mais mirabolantes projeções que construímos na nossa imaginação.
A saudade se alimenta de tempos diferentes, ela mistura presente, passado e futuro.
Já faz tempo que estou com saudade do que ainda não aconteceu...

- do meu novo trabalho; mal posso esperar para pôr as mãos na massa!
- da minha nova rotina: de horários, roteiros, pesquisas, viagens...
- do meu apartamento, que ainda não escolhi, mas vai ser lindo!
- do meu espaço para a solidão, sem ninguém por perto ou no meio de desconhecidos...
- de tantos amigos distantes: quantos verei novamente? quantos não verei mais?
- do meu irmão, que espero ansiosamente encontrar daqui a alguns meses!
- e do meu reencontro... não quero que fique no quase... será que vai acontecer?

No futuro, quero voltar aqui e escrever que senti saudade disso tudo, nos seus instantes mágicos de presente...