segunda-feira, 19 de abril de 2010

Mais Manoel de Barros...






Glossário de transnominações em que não se explicam algumas delas (nenhumas) - ou menos


Poesia, s.f.

Raiz de água larga no rosto da noite
Produto de uma pessoa inclinada a antro
Remanso que um riacho faz sob o caule da manhã
Espécie de réstia espantada que sai pelas
frinchas de um homem

Designa também a armação de objetos lúdicos com
emprego de palavras imagens cores sons etc. -
geralmente feitos por crianças, pessoas
esquisitas, loucos e bêbados


Poeta, s.m. e f.

Indivíduo que enxerga semente germinar e
engole céu
Espécie de vasadouro para contradições
Sabiá com trevas
Sujeito inviável: aberto aos
desentendimentos como um rosto


Manoel de Barros. "Arranjos para o assobio". Gramática Expositiva do Chão. Rio de Janeiro: Record, 1992.


domingo, 18 de abril de 2010

Um dos meus livros preferidos de Michel Pêcheux...

De todos os livros escritos por Michel Pêcheux, prefiro todos. Mas, talvez por causa das pesquisas sobre a história da lingüística realizadas em minha tese, a obra A língua inatingível (La langue introuvable, em francês), de Françoise Gadet e Michel Pêcheux (1981), é a que mais consulto, leio e releio. Eis uma das partes que prefiro, acompanhada de uma nota de rodapé, essencial, incontornável e muito divertida:


“Se o objeto da lingüística consiste no duplo fato de que existe língua e existem línguas, é necessário pensar no momento de sua divisão que, aliás, é a imagem de Babel: o mito apresenta a divisão das línguas coincidindo com o começo do Estado, do direito, das ciências e do prazer sexual... logo, com o começo de um impossível retorno ao paraíso perdido, contemporâneo mesmo dessa perda.

A lingüística, ciência da língua e das línguas, ciência da divisão sob a unidade, traria assim, inscrito em seu destino o desejo irrealizável de curar a ferida narcísica aberta pelo conhecimento da divisão. Seria esse destino que induz a estranha propensão da lingüística de resvalar na ignorância? Essa surdez interna ganha terreno cada vez que a lingüística deixa o real da língua, seu objeto próprio, e sucumbe às realidades psicossociológicas dos atos de linguagem que – pelo viés da designação, do contrato, do imperativo ou do performativo – terminam em histórias de maçãs (1)” (p. 19).

(1) Esse fruto empírico-teológico desempenha um papel importante nas reflexões lingüísticas e lógico-lingüísticas, seja nas demonstrações, seja nos exemplos. Algumas maçãs foram comidas uma vez ou outra em Chomsky e também nos lógicos como Reichenbach ou Quine. De modo mais ambicioso, o matemático R. Thom recorre ao enunciado Eva come uma maçã (Modeles mathèmatiques de la morphogenèse) para definir seu “processo de predação”, no qual o objeto desaparece sem que o sujeito (Eva, na ocorrência) seja de forma alguma afetado! Esse mesmo fruto permite que Bloomfield exponha sua teoria behaviorista do sentido. Quando Jill está com fome (“alguns de seus músculos se contraem e são produzidas algumas secreções, sobretudo em seu estômago”), pede a Jack (em uma “resposta-substituta” ao estímulo da fome) para pegar uma maçã para ela, o que ela faz (Langage, cap. 2). Em L’Ordre medical (Seuil, 1978) [Clavreul, J. A ordem médica: poder e impotência do discurso médico. SP: Brasiliense, 1983], Jean Clavreul comentará: “Jill poderia muito bem ter qualquer outra coisa, diferente de uma maçã, para pedir a Jack, como por exemplo, brincar de Adão e Eva, pois é provável que Jill e Jack já tenham ouvido falar de histórias de maçãs e paraíso terrestre, como você e eu (e muito certamente Bloomfield, Chomsky e Lyons, se bem que eles não digam nada sobre isso; mas é dessa forma que se manifesta o recalque pelo discurso ‘científico’)” (p. 41)” (PÊCHEUX & GADET, 1981, p. 24 e 25).



Referência Bibliográfica

PÊCHEUX, Michel & GADET, Françoise (1981) A Língua Inatingível. O Discurso na História da Lingüística. Campinas: Pontes, 2004.